Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A
gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus
porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não
dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter
vivido o dia.
A
gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre guerra. E aceitando a
guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando
os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não
aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos
números, da longa duração. A
gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: "hoje
não posso ir". A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E
a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará
mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter
com o que pagar nas filas em que se cobra.
A
gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e
ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao
cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos. A
gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e
cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os
olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável.
A
gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas,
tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento
ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só
os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta
na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a
gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não
há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para
poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos
se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.